3500 concertos depois, o silêncio dos grandes festivais trava o resto da música

Há dois verões que os grandes eventos de música não acontecem. Qual a sua importância? Como mudaram na última década? E quem tocou mais vezes nestes palcos? Analisámos onze anos de festivais de verão em Portugal.

Por Rute Correia@RuteRadio|

Eram 18h30, de 23 de agosto. “Lembro-me de estarmos a tocar a primeira música, que era uma música mais ambiental, e ver pessoas a correr a descer aquele anfiteatro natural... pessoas a correr e a acumularem-se à frente do palco e, de repente, o anfiteatro ficar completo à nossa frente. Tremiam-me as pernas em palco. Foi uma sensação indescritível”, Hugo Gomes, teclista dos Sensible Soccers, recorda a estreia do grupo no palco principal do festival Paredes de Coura. Estávamos em 2014 e a banda nortenha tinha lançado o seu álbum inaugural em fevereiro. “Além de termos percebido que a banda estava a bater, também percebemos que íamos chegar a muita gente nova, ou seja, que havia muita gente que nunca nos tinha visto. E a palavra tinha passado que era para se ir ver aquele concerto. E a grande verdade é que ainda hoje há muitas pessoas que nos dizem «a primeira vez que vos vi foi no palco principal em Paredes de Coura, ao fim da tarde», e dizem maravilhas desse concerto. E correu-nos mesmo muito bem, tocámos bem nesse concerto e foi muito fixe”. Em início de carreira, a importância dos grandes festivais de verão para os artistas pode ser avassaladora. Com quatro álbuns editados - o mais recente, Manoel, quase acabado de sair - os Sensible Soccers estão hoje bem estabelecidos na cena nacional (e não só), um feito que dificilmente teria acontecido sem passarem por aquele palco.

O pioneiro Vilar de Mouros e os que lhe seguiram

Os festivais de música em Portugal contam com décadas de história. Em Vilar de Mouros, no município de Caminha, o festival folclórico que arrancou em 1965 evoluiu lentamente até àquela que é considerada a primeira edição de um festival de verão no nosso país. Inspirado pelos ventos de mudança que sopraram vindos de Woodstock, António Barge e a sua família ergueram o palco na aldeia minhota, nos dias 7 e 8 de agosto de 1971. Manfred Mann e Elton John encabeçaram um alinhamento que repetia cerca de meia dúzia de bandas portuguesas de um dia para o outro, e onde se incluíam Quarteto 1111 ou Pop Five Music Incorporated, entre outros. A sua realização foi o maior sucesso, mas o evento em si, nem por isso. Em entrevista à revista Rádio & Televisão, uma semana depois do acontecimento, Barge criticou a RTP por não ter aparecido para a cobertura, queixou-se da falta de colaboração da imprensa regional, e elogiou o público pela sua maior cooperação face à escassez de comida e fracas condições para pernoitar no recinto. O festival só regressaria em 1982, para uma edição mítica onde tocaram uns novinhos U2 e uns GNR que acabavam de recrutar Rui Reininho. Depois disso, só em 1996 passou a ter edições anuais, mas a jornada atribulada do pioneiro ainda não estava terminada. O desacordo entre várias partes da organização e a subsequente falta de condições ditaram mais uma pausa na sua história, em 2006. Regressou de vez em 2014 e, este ano, assinalou o seu 50ºaniversário com uma edição simbólica para apenas 400 pessoas, seguindo as indicações da DGS.

Foi nos anos 90 do século passado que arrancaram os festivais de verão por excelência. Ainda antes do regresso de Vilar de Mouros, o pontapé de saída foi dado pelo Paredes de Coura, em 1993, embora os nomes internacionais tenham chegado ao cartaz só em 1998. Nesse ano, teve também início o Marés Vivas; o festival de Gaia viu-se obrigado a parar em 2001, por falta de apoios, mas, após um regresso tremido, em 2007, conseguiu manter as edições anuais. A sul, a promotora Música no Coração avançou com o Super Bock Super Rock na capital, em 1995, e em 1997 começou a levar a música ao litoral alentejano, com o Sudoeste.

Em 2004, um abanão vindo do outro lado do Atlântico aterrou no Parque da Bela Vista, com seis dias de música ao vivo e estrelas fora do alcance de todos os outros. Na edição inaugural, o Rock In Rio Lisboa viu Britney Spears e Sting estrearam-se em solo nacional, liderando o cartaz, com o artista inglês a tocar no último dia de festival perante uma plateia de 100 mil espetadores. Pouco tempo depois, o “divórcio” entre Luís Montez e Álvaro Covões levou a que o último criasse a sua própria promotora, a Everything is New. Assim nasceu o festival do Passeio Marítimo de Algés - a primeira edição do Alive aconteceu em 2007. Entre a crise e um mercado que parecia ter estabilizado, o Primavera Sound desafiou as probabilidades e aterrou no Porto em 2012. Juntamente com o Rock In Rio, é a única franquia internacional que resiste em ocupar um lugar nos maiores festivais portugueses.

Cronologia abreviada dos festivais de verão em Portugal

Cronologia abreviada dos festivais de verão em Portugal

Na APORFEST, a associação portuguesa de festivais de música, evita-se o termo “festival de verão”. Ricardo Bramão, presidente da associação, explica que, sobretudo nos anos iniciais de atividade, a organização trabalhou ativamente junto dos meios de comunicação social refutando este conceito, porque “o calendário dos festivais de música vai de janeiro a dezembro”. Não obstante, o mais recente relatório anual da associação, relativo a 2019, indica que 70% dos festivais de música em solo nacional se realizam entre os meses de junho e setembro, coincidindo com o período de férias alongadas. Importa frisar que a maioria dos festivais de música em Portugal é de pequena dimensão (58%), recebendo menos de 1500 espetadores por dia. Perante este contexto, os festivais que aqui analisamos são a exceção relativamente ao panorama nacional, mas pela sua dimensão têm um impacto profundo no setor.

De aposta a consagração

Antes de chegarem ao palco principal do Paredes de Coura, os Sensible Soccers já tinham atuado no festival. Em 2013, assumiram uma posição num palco secundário feito principal, numa espécie de noite de aquecimento que antecede o arranque oficial do evento. Apesar de terem tocado para menos gente, até esse momento foi determinante na sua carreira, detalha Gomes: “percebemos que a nossa música também funcionava para um público grande. Até então estás a dar concertos para poucas pessoas, se és uma banda em início de carreira. Na melhor das hipóteses, dás um concerto para 300 pessoas e isso já é correr muito bem. De repente, quando tens centenas de pessoas à sua frente – ou mais: 1500, 2000, 3000 - e vês que a tua música funciona para aquela gente toda, isso é uma mensagem interna muito forte, que dá uma certa segurança naquilo que estás a fazer, nas decisões que tomaste até então. E [sabes] que podes continuar a seguir o seu caminho porque estás a trabalhar bem”.

Na Bridgetown, a agência de talentos que representa nomes como Mishlawi, Plutónio ou Richie Campbell, os palcos dos festivais de verão são mais um entre as dezenas de concertos que os seus artistas dão todos os anos. Afonso Ferreira, sócio da empresa, explica que, em termos financeiros, este lote de eventos não é substancialmente diferente do restante circuito de concertos em Portugal, que inclui feiras e romarias, festas académicas, bem como outros eventos mais pequenos e concertos em nome próprio: “do ponto de vista de negócio, são apenas mais um [concerto]; não te pagam melhor ou, quando o fazem, a diferença não é muito relevante”. Contudo, sublinha que os festivais de verão oferecem uma grande vantagem: uma projeção mediática que praticamente mais nenhum tipo de evento consegue replicar – “Nós [na Bridgetown] sempre compreendemos a oportunidade de promoção do festival, que está a comunicar durante seis, sete, oito meses, ou mais. Se [o artista] for dos primeiros nomes a ser anunciados, independentemente de até nem ser cabeças de cartaz, vai estar no período inteiro de comunicação daquele festival. E isso é bom para promover o nome e para promover a música, porque em Portugal tens sempre rádios que apoiam os festivais e, consequentemente, tocam a música que vai passar por lá”

O ciclo de comunicação destes eventos não se encerra na preparação: o retorno acontece também após a atuação. “Tu tocas numa Expofacic para 45 mil pessoas e não saem notícias sobre isso, mas fazes um Sudoeste e saem 30 notícias no dia seguinte”, explica Afonso Ferreira, e prossegue “estava muito mais gente a ver o Richie na Expofacic em 2014 do que no último Sumol Summer Fest que ele fez, e muitíssimas mais do que estavam a ver o Dino [D’Santiago] ou Plutónio no Iminente”. O comentário de Ferreira não é despropositado. A título de exemplo, o jornal Público publicou, nos últimos quatro meses, mais de uma dezena de peças sobre o Iminente, um festival lisboeta cuja lotação se situou nos 5000 espetadores. A última vez que publicou algo sobre a Expofacic, um evento que mobiliza cerca de 400 mil visitantes anuais, foi em 2018. Tal como os grandes festivais de verão, foi adiada em 2020 e em 2021.

Gomes concorda com esta perspetiva da relevância dos festivais de verão pelo seu peso mediático, mas acrescenta que é também uma ocasião muito preciosa para os artistas mostrarem o seu trabalho a quem ainda não o conhece: “Se estão ali 30 mil pessoas para ver o Nick Cave, são 30 mil pessoas que podem ainda não conhecer Sensible Soccers e que vão passar a conhecer”, reforça. O cartão de visita não serve apenas para o público. Uma boa impressão junto da promotora pode significar mais concertos marcados ao longo do ano, e é aí que os artistas conseguem arrecadar um pouco mais dinheiro.

Vanessa Careta é uma das pessoas responsáveis pelos alinhamentos dos cartazes de festivais de verão em Portugal. Depois de quase uma década a marcar artistas pela Música no Coração (promotora de festivais como o Sudoeste e o Super Bock Super Rock), em 2018 mudou-se para a Everything is New, a fábrica por trás do Alive. Careta admite que “Portugal está mais presente na cabeça dos agentes” do que quando começou, mas afirma que a maior diferença que sente na marcação de artistas estrangeiros está na relação que foi construindo com os agentes ao longo do tempo. Isso e, claro, a perceção que determinado festival tem internacionalmente - “trabalhar para o NOS Alive é, de facto, uma vantagem, porque o festival é muito reconhecido lá fora. E é visto, não erradamente, a par com o Rock In Rio, como o maior festival em Portugal”, refere, realçando que são eventos com características distintas.

Essa distinção entre festivais traduz-se, sobretudo, na construção dos alinhamentos: quem atua, em que palco e a que horas. Um artista que toque num palco principal num determinado evento não tem necessariamente essa garantia noutros eventos, seja pelo género de música que produz ou interpreta, pela dimensão do seu público ou, claro, pela própria orientação da programação do festival.

Quando os Sensible Soccers regressaram à Praia Fluvial do Taboão, em 2014, ocupando um dos lugares de abertura do palco principal, a confirmação do valor da banda foi óbvia não necessariamente pela mudança de palco, mas pela resposta do público. Gomes, detalha como estavam nervosos: “demos um concerto no palco principal ao fim da tarde ainda à luz do dia e estávamos com receio de não ter muita gente, porque é uma hora em que algumas pessoas estão no rio, outras estão a preparar-se para ir para o festival, outras ainda não jantaram, portanto, ainda vão jantar e só vêm depois aos concertos à noite. Esses primeiros concertos do palco principal são muitas vezes são descurados pelo público”. O concerto foi um triunfo na carreira dos nortenhos, como já sabemos.

No último Alive, em 2019, a Bridgetown desenhou a curadoria de uma das noites do Clubbing, um dos palcos secundários. A festa foi liderada por Plutónio, que deu um concerto cuja assistência ultrapassou em muito os limites da tenda. “Em termos de estratégia para o artista, fazia todo o sentido o Plutónio estar ali, ser o cabeça de cartaz do palco secundário de um dos maiores festivais em Portugal. Naquela altura, ele ainda não tinha feito o Coliseu [dos Recreios], o álbum ainda nem tinha saído, portanto, não fazia sentido estar noutro sítio.”, declara Ferreira, mas nem sempre as oportunidades se adequam ao valor de mercado de cada artista, e prossegue com outro exemplo: “no Rock In Rio, não faz sentido nenhum o Richie [Campbell] tocar às quatro da tarde, mas é o slot que existe. E é injusto, e se calhar por isso é que nunca lá foi [atuar], porque chegamos a um ponto em que pensamos que não faz sentido ele estar a ocupar um slot que foi ocupado por outros artistas portugueses que não têm metade da dimensão que ele tem. E, se calhar, há artistas internacionais que vêm porque estão nos packs das digressões, e até tocam mais tarde, mas não têm a dimensão que o Richie tem em Portugal.” Com uma carreira a solo que conta mais de uma década, Campbell já foi o nome maior de inúmeros festivais pelo país fora, e surge na nossa lista de artistas com maior número de prestações em grandes eventos (gráfico mais abaixo). Nesta análise, deu sete concertos: duas num palco secundário do Sudoeste (2009, 2010), três no palco principal da Zambujeira do Mar (2012, 2013 e 2017) e duas no palco principal do Marés Vivas (2015 e 2018).

Os “packs de digressões” que Ferreira menciona dizem respeito a contratações feitas em bloco. Cá dentro, como lá fora, as agências de talentos representam mais do que um artista. Frequentemente, vendem concertos em lote, assegurando que tanto os artistas mais requisitados do seu catálogo, bem como outros em ascensão, têm datas marcadas. Pela sua dimensão, os festivais são a oportunidade perfeita para este tipo de negócio. Por outro lado, festivais em países vizinhos também tendem a alinhar intenções, sobretudo quando o objetivo é agarrar estrelas internacionais. Na Península Ibérica, há vários anos que o Alive acontece no mesmo fim-de-semana que o madrileno Mad Cool, já o Super Bock Super Rock sobrepõe-se ao também espanhol Benicassim, mas este tipo de ligações acontece com outros festivais um pouco por toda a Europa. Conseguir marcar dois concertos enquanto se baixam custos de produção (sobretudo em transporte de artistas, comitiva e material) é benéfico para todas as partes.

Careta enfatiza que, apesar das semelhanças “entre cartazes de festivais que acontecem no mesmo período e que estão próximos”, eles constroem-se de modo distinto, e prossegue, “se calhar, podes coincidir dois ou três cabeças de cartaz, mas depois se olhares para o resto do cartaz, começas a ver diferenças, porque são países diferentes. O público português e o espanhol não são o mesmo público”. Esta diferença é notória quando olhamos para os artistas que tocaram mais vezes. Apenas quatro bandas deram dez concertos ou mais, todas elas portuguesas: Linda Martini (10), Capitão Fausto (13) e Orelha Negra (13) são os reis dos grandes festivais nacionais, repartindo as suas atuações por mais de metade dos eventos. Só quatro nomes estrangeiros aparecem nesta lista. Os The National encabeçaram cinco dos sete festivais analisados, e preparam-se para juntar mais um à sua lista, já que estão anunciados para o Rock in Rio de 2022.

Para lá de quem atuou mais vezes, existem também os favoritos de cada festival, caso dos Shellac que tiveram marcação garantida em todas as edições do Primavera Sound. Fora do gráfico ficaram os seis concertos de Ivete Sangalo. A baiana não só tocou em todas as edições do Rock In Rio, incluindo as anteriores ao período de análise, como tocou duas vezes em 2016, substituindo Ariana Grande no alinhamento - a cantora norte-americana era cabeça de cartaz, mas cancelou o concerto em cima da hora. O Paredes de Coura tem um fraquinho por Nuno Lopes (tocou cinco vezes); no Marés Vivas quem fez mais pratos girar foi DJ Oder (quatro vezes).

Menina não entra, se for portuguesa ainda pior

Estas relações de preferência de festivais por certos artistas também são evidentes no tipo de artista que tem direito ao palco principal. Nos grande festivais nacionais, a representação de género é extremamente desequilibrada, com os artistas masculinos a assumirem quase sempre o protagonismo, seja a solo ou enquanto parte de uma banda. Em média, ocupam 70-90% das posições disponíveis. O Rock In Rio é quem fica melhor na figura; o Alive destaca-se pelas piores razões.

O panorama tem vindo a alterar-se nos últimos anos, mas ainda de forma tímida. Entre 2017 e 2019, o número de artistas do género feminino a terem espaço para atuar quadruplicou de quatro para dezasseis, o valor máximo em onze anos. Ainda assim, mantém-se bastante aquém do número de bandas lideradas por homens (39). Nota, ainda, para a atuação de dois artistas de género não-binário: Sam Smith no Alive, em 2015, Demi Lovato no Rock In Rio, em 2018. As estatísticas da APORFEST confirmam que a disparidade na representação de género é transversal à maioria dos festivais nacionais: segundo o seu relatório, em 2019, as mulheres assumiram o protagonismo de apenas 14% dos concertos, nestes eventos.

Para Vanessa Careta, esta assimetria prende-se com a própria estrutura da indústria musical: “no palco principal dos grandes festivais não vais ver grandes mudanças, porque são reflexos do que é mais popular, conforme os géneros de música mais programados. Reflete os tops e reflete a produção. Não há preconceito com colocar bandas com mulheres. Gossip, Florence & The Machine, The XX, St. Vincent, Savages, etc. foram nomes fáceis de programar. Não podes forçar uma equitatividade no fim da linha, se não há produção de base”. Esta lógica de reprodução do que é mais popular é particularmente notória num aumento de nomes masculinos a solo ao longo do tempo em detrimento de bandas. O crescimento foi alavancado, em boa parte, pelo Sudoeste, cuja programação se virou para uma eletrónica mais comercial e para artistas de rap, géneros que tendem a ser apresentados por homens.

As mulheres que representaram o emblema nacional no estrado principal contam-se pelos dedos das mãos: Amor Electro, Clã, Deolinda, Ana Moura, Áurea, Blaya, Carolina Deslandes e Mariza foram as únicas bandas ou artistas a solo femininas nacionais a conseguirem um lugar num destes palcos. Mas a carência de música portuguesa não se restringe ao género feminino; o problema é generalizado, embora a percentagem varie significativamente entre as múltiplas edições.

O Marés Vivas e o Sudoeste assumem-se como bastiões da música nacional, sendo os únicos a apresentar uma média acima dos 20%. O caso do Marés Vivas é particularmente interessante, uma vez que em algumas das primeiras edições aqui analisadas não tinha qualquer música portuguesa no alinhamento. Nos últimos anos, contudo, o evento de Gaia tem apostado em artistas nacionais sem pudores: de 2014 em diante, a percentagem de música portuguesa no palco principal nunca foi menos que 30%, atingindo um máximo de 58% em 2015.

Para Careta, a prevalência de internacionais nos palcos principais prende-se com a necessidade de tornar cada evento o mais aliciante possível, justificando que “os bilhetes para estes eventos são bastante caros. Por isso, temos de nos certificar que o que entregamos ao público é algo verdadeiramente especial, que valha a pena esse esforço [financeiro]”. Afinal, se existe a hipótese de ver um artista nacional noutra altura do ano por menos dinheiro, é provável que deixe de ser prioritário. Ainda assim, existem momentos na música nacional que merecem as honras de liderarem o palco principal. Em 2020, a reunião dos Da Weasel, cerca de uma dúzia de anos depois do fim da banda, seria um dos pontos altos do Alive. O concerto mantém-se confirmado para a edição do próximo ano.

Mas esse toque especial traduz-se, por vezes, num aumento do esforço financeiro para quem quer marcar presença. Em 2011, um dia adicional de evento traduziu-se num aumento de 24€ no passe para todos os dias do festival do Passeio Marítimo de Algés (quatro em vez dos habituais três), com os Coldplay a encabeçarem essa quarta-feira extraordinária. O valor de entrada de 129€ só foi igualado em 2017 e ultrapassado nos anos seguintes. Depois da descida do IVA para os espetáculos culturais (de 13% para 6%), em 2019, quase todos os festivais baixaram os preços. A exceção está nos dois eventos da promotora Música no Coração: tanto o Sudoeste como o Super Bock Super Rock mantiveram aumentos nos passes gerais.

O assunto “preços” não se esgota nesta evolução. Explica Ricardo Bramão, da APORFEST, que “o investimento autárquico permite, muitas vezes, preços de bilhetes mais baratos com os quais um promotor privado não consegue competir, porque a câmara municipal acaba por reaver a receita de uma outra forma”, daí que os preços dos grande eventos sejam particularmente avultados por comparação a outros, com apoios ou organização municipal deste tipo.

Com a ameaça de uma inflação galopante à espreita, Bramão acrescenta que essa é uma das maiores preocupações de um setor já profundamente fragilizado. “Haverá, certamente, um impacto da inflação nos custos de produção, porque será algo alargado a todas as peças que compõem um festival: técnicos, transportes, bandas, fornecedores, etc. Durante a Troika, o preço dos bilhetes aumentou, mas houve uma mobilização geral do público, porque a imagem dos festivais também mudou. Um aumento generalizado do preço dos bilhetes agora teria um impacto acentuado na seleção de público”, admite.

Uma grande incerteza chamada 2022

Nas palavras de Afonso Ferreira, o impacto da pandemia para a Bridgetown “foi gigante”. Durante estes dois anos, valeu-lhes trabalharem também com comediantes (Luís Franco-Bastos e Pedro Teixeira da Mota), cujo trabalho inclui outro tipo de atividades, como rádio, locuções comerciais e eventos privados, bem como o facto de manterem um segmento de publicação discográfica. Editado em novembro de 2019, o terceiro álbum de Plutónio, Sacrifício – Sangue, Lágrimas & Suor, foi o primeiro disco nacional de edição exclusivamente digital a alcançar a certificação de Platina.

Para um artista como o Plutónio, foi um rombo brutal e nem sequer é uma questão financeira. É uma questão de não conseguires repetir aquele momento em que ele estava. No outro dia, estava a falar com ele e disse-lhe «Tu abriste e fechaste o ciclo», que foi: ele faz um dos últimos grandes concertos, que é no Coliseu [dos Recreios] - à pinha, um grande momento, uma cena histórica, inacreditável! E depois faz o Iminente, que é um dos primeiros concertos sem limitações. Só que, nesse ano e meio, ele devia ter dado 70 concertos.

Afonso Ferreira, sócio-gerente da agência de talentos Bridgetown

A agência teve quebras de receita que ultrapassaram os 60%, com a marcação de concertos a 10% do que era antes da pandemia. Ferreira admite que só em 2023 ou 2024 a Bridgetown poderá estar nas mesmas condições de anteriormente, mas deixa claro que a equipa nunca deixou de trabalhar ao longo deste período, de modo a que, quando tudo recomeçasse, estivesse o mais perto possível de onde estava antes.

Os grandes eventos podem estar em silêncio há dois anos, mas a indústria da música ao vivo já retomou a sua passada. Este ano, alguns mais pequenos já abriram a porta para os maiores, que deverão de regressar em 2022. ZigurFest (Lamego), Tremor (Açores) ou Festival Internacional De Música De Marvão, entre vários outros, já todos tiveram edições este ano, mas a conjuntura é de grande incerteza. Bramão esclarece que “2022 será um ano muito difícil e servirá para perceber qual o caminho que as coisas vão levar doravante”, mas assume que a reviravolta já está em marcha: “muitos já fecharam portas, embora tenham surgido novos prestadores de serviços”. No entanto, reconhece que as consequências da paragem abrupta e prolongada poderão ser mais marcadas do que os dois anos de faturação quase nula, admitindo que o nível de qualidade dos festivais possa descer nos próximos anos: “a perda de pessoal técnico (backline, técnicos de som ou de luz, entre outros), que se viu obrigado a mudar de área profissional durante a pandemia certamente gerará debilidade no futuro”.

A profissionalização do setor dos festivais, impulsionada em boa parte pelos grandes eventos, desencadeou uma série de efeitos observáveis no tecido da indústria musical – da multiplicação de eventos de menor dimensão, até à música que passou a ser produzida. Hugo Gomes, dos Sensible Soccers, não tem dúvidas: “Nós conseguimos comunicar bem com as pessoas que gostam da nossa música. Onde temos sempre dificuldades, como todas as outras bandas, é em chegar a outros públicos, a pessoas que ainda não nos conhecem. E é claro que, quando editas um disco novo, se contratares uma boa publisher e se fizeres um bom trabalho junto dos media, tu podes criar uma boa comunicação e saber-se que lançaste um disco novo, mas até que ponto é que as pessoas vão ouvir isso, eu não sei. São os festivais que conseguem garantir isso. E a massa dos festivais em Portugal tem um papel fundamental neste crescimento que existiu na última década na música portuguesa, não só na quantidade de gente que está a fazer música, mas na diversidade que existe na música que está a ser feita”.

Para lá da música, a APORFEST estimou o impacto económico dos festivais de música, em 2019, em 2 mil milhões de euros. O valor inclui bilheteira, mas também gastos com deslocações, alojamento, alimentação e outro consumo gerado à sua volta. Numa altura em que o alarme ambiental soa cada vez mais alto, importa também refletir sobre as suas repercussões sobre o planeta. Em 2017, o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, declarava que a pegada ambiental de um festivaleiro era quase duas vezes superior (x1,8) à da sua existência enquanto cidadão normal. Nesse ano, o governo apresentou o programa Sê-lo Verde, num esforço para “incentivar os promotores de festivais a adotarem medidas que sensibilizem para a proteção do ambiente, melhorem a eficiência energética, reduzam o impacto ambiental e promovam uma melhor gestão de recursos”. O programa de apoio foi alterado em 2020, devido às restrições impostas pela pandemia, e ainda não regressou.

Na última década, os efeitos dos festivais extrapolaram a fronteira da música. Tornaram-se eventos para todos os gostos musicais, cada vez mais multidisciplinares, e para toda a família. Têm sido catalisadores de turismo externo e interno, criando pólos de dinamização cultural e económica em áreas menos povoadas, como é o caso do Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos (Tomar), ou o Festins, na vila de Alcains (Castelo Branco). Bramão considera que “a pandemia veio demonstrar que a experiência da música ao vivo (bem como outras artes de palco, como o teatro) não consegue ser replicada noutro ambiente, como o online – não há uma substituição efetiva”. Resta saber quanto tempo demorará a retoma.

Notas Metodológicas

Recolhemos os cartazes completos de sete festivais de música com impacto mediático a nível nacional, relativos aos anos entre 2009 e 2019. Em baixo os critérios de seleção dos festivais analisados, com uma enumeração não exaustiva de eventos excluídos em cada um dos pontos:

  • o seu foco está na programação musical (Fatacil, Ovibeja, Expofacic, Avante, feiras e romarias)
  • tem um cartaz abrangente, não restrito a um género musical (RFM Somnii, Boom Festival, neoPOP)
  • tem, habitualmente, mais de 10 mil espetadores por dia e mais de 30 mil por evento (Sumol Summer Fest, Vilar de Mouros)

A recolha foi manual, confirmada através do cruzamento de informação publicadas em vários meios de comunicação, bem como de informação veiculada pelas respetivas promotoras. Os alinhamentos partilhados correspondem aos horários divulgados para cada evento. Apesar de incluídas no conjunto de dados, na medida do possível, não foram consideradas para a análise alterações de última hora (como cancelamentos de artistas em cima do evento), visto que são alheias à vontade dos promotores, nem sempre se enquadrando na restante programação. Sobre a uniformização dos nomes dos artistas e contagens, não diferenciámos DJ set de concerto.

Os conjuntos de dados utilizados estão disponíveis no GitHub do Interruptor.