Dois Patinhos na Lagoa

Cinco vezes vinte e dois. Cinco saltos pela relação entre Portugal e o Brasil, dois patinhos na lagoa atlântica, de costas para seus continentes, boiando sobre as ondas, olhando o horizonte.

Luca Argel@lucargel@lucargel,Luca Argel@lucargel@lucargel|

Este é o primeiro capítulo de uma coleção de peças criadas por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Luca Argel é um dos cronistas-curadores que convidámos para escrever/criar sobre o Brasil, a propósito do 200º aniversário da independência desse gigante da lusofonia, potência mundial sempre em potência, berço da maior comunidade imigrante em Portugal.

1. Vinte e dois era o sujeito que jogava pedra em avião, beliscava azulejo, queimava dinheiro. O maluquinho da rua.

Chamavam assim porque no código penal de 1940 era o artigo 22 que previa a inimputabilidade de pessoas com distúrbios psiquiátricos que cometessem crimes. “Olha o que ele fez! Esse aí só pode ser 22…”. A gíria é velha, mas ainda persiste no vocabulário de alguns cariocas. Num samba do mestre Nei Lopes, recordando aquele jeito antigo de falar, ainda se canta: “No tempo que Dondon jogava no Andaraí / 22 era demente / Minha casa era meu bangalô…” e por aí vai. O Frankão (a.k.a. “O Gringo Sou Eu”), companheiro nas andanças do samba no Porto, e que tem uma década a mais nas costas do que eu, já me contou que na terra dele também se usava uma variante do calão. Quando o desvario atingia proporções perigosas e a pessoa acabava internada, passava a ser chamada de “22 de gaiola”.

E nós aqui? Quem sempre se achou em dia com a saúde mental, ainda conseguirá dizer o mesmo depois de dois anos de pandemia e três de Bolsonaro? Desconfie de quem disser que sim. Querendo ou não, todos acabamos por chegar a 22.

2. O Brasil parece ter criado uma relação mística com este número.

Já há dois séculos que ele vem assinalando acontecimentos marcantes – e nunca desprovidos de uma certa dose de maluquice. Começou em 1822, com o processo de independência mais bizarro de que já se ouviu falar, onde o herdeiro do trono da metrópole, ele próprio um autêntico 22, declara a independência da colônia, torna-se imperador da mesma, só para depois abandonar o novo país nas mãos do filho de seis anos, e ir lutar novamente pelo trono da metrópole que ele já havia abandonado. E se dito assim parece confuso, o que mais espanta é a constatação de que, ao contrário de todos os outros países colonizados, o Brasil conquista a sua independência não para derrubar a monarquia, mas para mantê-la. Com a mesma dinastia e tudo. O clássico “mudar para continuar igual”.

Por essas e outras é que existia até há pouco tempo (talvez na cabeça de alguns ainda exista) uma ideia enganosa do Brasil como um país pacato e amável, com um processo histórico pacífico, sem guerras internas. Nada mais distante da verdade. Basta ver que na Bahia a data da independência não é o 7 de setembro de 1822, mas sim o 2 de julho de 1823, quando uma insistente facção do exército português foi finalmente derrotada, depois de uma disputa local sangrenta.

Como não cresci na Bahia, não aprendi isso na escola. O ano de 1822 sempre figurou unânime nos meus manuais, e também não me lembro de ter ouvido falar de nenhuma guerra. Fui aprendendo o resto por conta própria, com o passar dos anos. Por exemplo, o livro mais importante que li no ano passado, o romance histórico Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (que recomendo vivamente aos que não se assustam com tijolos de mais de 600 páginas), se passa maioritariamente na Bahia deste período. A protagonista é uma jovem africana escravizada, que trabalha numa fazenda de cana-de-açúcar na Ilha de Itaparica. É chocante perceber o quanto este momento fulcral na história do país influencia a vida da personagem. Rigorosamente nada. Ela ouve boatos desencontrados na senzala, fragmentos de conversa na sala de jantar da casa grande, e percebe que algo se passa em Salvador. No dia 2 de julho escuta os fogos de artifício comemorando a vitória brasileira. Sabe até que houve negros que lutaram contra os portugueses, iludidos pela promessa de que com a independência viria junto a abolição da escravatura — pois assim aconteceu com todos os nossos vizinhos sulamericanos. Mas não foi o caso no Brasil. O dia seguinte da independência foi de chibatas e correntes, tal qual todos os dias dos últimos trezentos anos, e como continuariam a ser os dias dos sessenta e cinco anos seguintes.

 

3. Salto para 1922, outro ano marcante.

Desta vez já temos aqui um jovem país comemorando um século de autonomia, mas ainda bastante inseguro a respeito de si. Recentemente ouvi uma coisa engraçada sobre este período. Era mais ou menos assim: existem povos que tiveram (alguns ainda têm) de procurar ou lutar por um país para chamar de seu (curdos, palestinos, bascos, e tantos outros). São, digamos, nações sem país. O Brasil era o contrário: um país sem nação. Um território de fronteiras bem definidas, unidade administrativa, mas com uma tremenda crise de identidade. Desde a independência que andávamos às voltas com a tarefa de fabricar uma nação. Inventar seus símbolos, sua bandeira, seu hino, sua história. Sobretudo inventar sua história. E a história do seu povo. A tarefa é gigantesca, e ainda me parece inacabada, apesar de ter recebido ao longo do tempo contribuições muito boas. Outras nem tanto. Uma das mais memoráveis aconteceu em 1922, e Portugal também teve um papel chave na sua elaboração.

Veio dos botecos de Coimbra do final do século XIX, nas ideias da Geração de 70, na tese de que o período de glória das navegações portuguesas teria sido obra de uma “raça heroica", que essa raça teria sido extinta a partir 1580, quando Portugal cai em domínio espanhol, e que a partir daí o país só teria ido ladeira abaixo, preso numa espiral de degeneração e decadência irreversível. Ok. Agora com todo o respeito a Eças, Anteros e Oliveiras Martins: que ideia mais besta. Como se Portugal já não tivesse problemas suficientes de auto-estima, ainda me inventam isso. Alô Portugal, sai dessa! Você hoje é muito mais bacana do que no século XVI! Não caia na conversa fiada de glorificar colonizações, invasões, domínios… Isso é cilada!

Vocês me desculpem o desabafo, mas depois de dez anos vivendo aqui, ainda vejo gente que parece que pensa assim, idealizando um passo imperial, e às vezes me dá vontade de dar, sei lá, um abanão. Embora fosse melhor um divã colossal que aconchegasse Portugal inteiro numa longa sessão de psicanálise. Enfim. O que aconteceu é que a ideia da mítica “raça heroica” portuguesa acabou por seduzir um figurão brasileiro chamado Paulo Prado. Multimilionário paulista, maior exportador de café do Brasil (e portanto do mundo), Prado também tinha grandes ambições intelectuais, e deu sua contribuição naquela tarefa de inventar uma nação brasileira. Ele admitia que o brasileiro era um povo miscigenado por definição, mas distinguia a nossa miscigenação em duas estirpes diferentes. Uma teria se desenvolvido por toda a costa, se misturado com os africanos escravizados, e, principalmente, tinha recebido a contribuição portuguesa de gerações posteriores a 1580. Ou seja, por um e outro motivo seria uma raça inferior, decadente. A outra estirpe teria vindo da mistura entre os indígenas e os primeiros portugueses a chegarem no Brasil, ainda da tal “raça heroica”, que se embrenharam pelo interior, atravessaram a Serra do Mar, e lá, isolados no planalto, fundaram uma cidade. Essa raça superior seria, naturalmente, a do próprio Prado: os paulistas.

A partir daí ele desenvolve toda uma teoria eugenista e segregacionista da qual pouparei o estômago do estimado leitor. Aos mais destemidos, recomendo o interessantíssimo livro Tietê Tejo Sena, de Carlos Berriel, que desmonta com muita lucidez o personagem. Para nós basta saber que nos planos de Prado de afirmação da supremacia paulista, a componente cultural era das mais importantes. E ele, justiça seja feita, fez um trabalho extraordinário de promoção da sua causa, idealizando e financiando um evento de uma semana, com a participação de grandes artistas, no Teatro Municipal de São Paulo: a “Semana de Arte Moderna”. Ou, para os íntimos, simplesmente “Semana de 22”. Assim mesmo, como se o ano tivesse tido apenas uma semana. Aquela.

O barulho resultou, e até além da conta, felizmente, porque a Semana de 22 não só não se deixou reduzir àquela finalidade política, mas continua sendo um marco histórico nas tentativas de interpretação e criação da cultura brasileira como a entendemos hoje. Dificilmente teríamos um Caetano Veloso se não tivéssemos tido antes a Antropofagia de um Oswald de Andrade, por exemplo. Por outro lado, a sede iconoclasta pela ruptura, tão característica daquele modernismo, o seu desejo de apagamento de toda a tradição acumulada no último século, bem como a sombra que ele jogou em todos os seus contemporâneos, estavam sem dúvida a serviço do programa racista de Prado. Um programa de refundação do Brasil tendo São Paulo como centro absoluto: econômico, social e cultural. Fazer da cidade uma metrópole cuja colônia seria o resto do país.

 

4. Pequena pausa para respirar antes do último salto.

Apesar do espírito intrépido dos nossos modernistas, a grande aventura de 1922 não passou por São Paulo. O que brasileiros e portugueses acompanharam com a maior comoção naquele ano foi a primeira travessia aérea do atlântico sul, realizada por Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Dois poéticos 22, que resolveram fazer a rota Lisboa-Rio num pequeno hidroavião, com pouca autonomia de combustível, sem o auxílio de navios lá embaixo, sem radiocomunicador, e levando só bolachinhas e barrinhas de chocolate para comer. E uma garrafa de vinho do Porto.

Claro que deu tudo errado. Quer dizer, eles chegaram vivos no destino, o que já foi um enorme triunfo, mas só depois de 62 horas de voo, distribuídas por 79 dias de viagem, e duas aeronaves avariadas. Deve ter sido uma experiência quase tão desagradável quando voar de RyanAir.

E eu quis falar sobre essa viagem não pelo que ela teve de êxito, mas justamente pelas adversidades. Porque, diante delas, no meio do caminho os viajantes se viram obrigados a fazer uma manobra que acho fascinante: amarar. É claro que o corretor automático quis corrigir esta última palavra. Acha que eu quis dizer “amarrar”. Não senhor, eu disse mesmo amarar, que é a única forma que um hidroavião tem de pousar, uma vez que não pode aterrar (ou aterrisar, se a terra estiver no Brasil).

Esta pausa foi apenas uma desculpa para usar esta palavra. Tão raro ter a oportunidade de dizer amarar. Eu amaro, tu amaras, eles amaram. Tirem uns segundos para apreciar esta palavra. Reparem como é bonita.

 

5. Portugal e Brasil. Dois patinhos na lagoa atlântica, de costas para seus continentes, boiando sobre as ondas, olhando o horizonte. Salto para 2022.

Um brasileiro ou brasileira que tenha sobrevivido até este momento, especialmente se morar em Portugal, como eu, dificilmente viverá um ano tão repleto de grandes efemérides quanto este. Aguardo ansiosamente por convites para as festas de celebração de todas elas. Seja no Brasil, seja em Portugal, de preferência com bebidas, comidinhas e muito senso crítico. Aguardo por uma mega promoção da TAP em comemoração ao centenário da rota Lisboa-Rio. Mas principalmente, aguardo pelo advento de uma nova efeméride. Uma que continuará sendo celebrada daqui a cem anos, da qual mais do que tudo desejo participar, e participarei: a derrota, pela vontade popular, do monstro mais repugnante que algum dia já presidiu o meu país. E, porque sonhar não custa nada, que esse perigoso 22 encontre a sua gaiola.

Sobre o autor e o ilustrador

Do Rio de Janeiro, Luca Argel mudou-se para Portugal em 2012, tendo estacionado na cidade Invicta. Tem um mestrado em Literatura pela Universidade do Porto, mas o seu percurso tem sido trilhado entre as letras e a música. Cantor e compositor, assinou livros de poesia, várias bandas sonoras para dança e cinema, e quatro álbuns. O mais recente, “Samba de Guerrilha”, parte da história política do samba para (re)inventar estrofes e refrões, recontando as narrativas de quem usou a canção como arma de resistência. 

Também carioca, André Diniz é roteirista e ilustrador de banda desenhada. Desde o ano 2000, publicou mais de 30 obras, mas só em 2013 chegou às estantes portuguesas, com a edição da sua biografia de Maurício Hora, fotógrafo nascido e criado no Morro da Providência (a primeira favela brasileira, estabelecida em 1897). “Morro da Favela” (Polvo) foi recentemente reeditado numa versão ampliada. Em 2021, também pela Polvo, publicou "A Revolta da Vacina", recontando a história da epidemia de varíola que, em 1904, alastrou pelo Brasil, dando origem a um processo de vacinação compulsiva e consequentes revoltas. Reside em Lisboa desde 2016.